Especial Seca: Dadá, o resistente. Adão, o diferente

Com sua foice companheira, Dadá levou o gado para longe de Assaré, repetindo a rotina de décadas para fugir da seca. Em Ouricuri, o jovem Adão inventa modos de enfrentar a estiagem

  Por Alexandre Medeiros – Jornal O Dia   Adão e Jesus Oliveira e seu filho Fernando – Foto: Severino Silva (Agencia O Dia) Assaré (Ceará) e Ouricuri (Pernambuco) – Dadá e Adão não se conhecem. Estão separados por 113 quilômetros em linha reta, isso se a distância entre Assaré (CE), onde mora Dadá, e Ouricuri (PE), onde vive Adão, ainda tivesse que ser cumprida em lombo de cavalo, cruzando-se a caatinga em pelo menos dois dias de viagem. Por estrada, o percurso é de 174 quilômetros, feito em pouco mais de duas horas. Tão diferentes quanto usar um cavalo ou um carro para ir de Assaré a Ouricuri são os modos como Dadá e Adão encaram a seca que, esta sim, se abate sobre os dois do mesmo jeito, sem tirar nem pôr. O primeiro tem um rosário de secas para desfiar. “Pode anotar aí: 1958, alifeia; 1970, braba; 1973, triste; essa nossa agora, a pior”, garante Dadá, batizado Filomeno, que se orgulha de ter tido amizade fraterna com o grande Patativa do Assaré, poeta ali nascido e cujos versos encantaram legiões “por dentro e por fora do Ceará”. Dadá até agradece ao Senhor por ter levado Patativa embora há alguns anos (em 8 de julho de 2002, aos 93 anos): “Pelo menos ele não teve o desgosto de ver mais essa seca”. O desgosto de que Patativa foi poupado, Dadá faz questão de perpetuar. Resiste aos apelos dos netos para que pare de trabalhar, como se resistir à seca do jeito tradicional fosse uma mortalha: levar o gado para longe, guardar as sementes, gastar o que não se tem em bodega para comprar comida. “Muitos me chamavam de Dadá Rico porque comida nunca tive de comprar. Agora não mereço mais ser chamado assim.” Já Adão é só esperança em Ouricuri. Fez do seu pequeno lote de terra uma agrovila experimental, onde não desmata, não faz queimadas e planta feijão e milho ao lado de palmas e mandacarus. Ao contrário da maior parte dos sertanejos, ele não tem rebanho bovino, só bodes, cabras e ovelhas, animais mais resistentes à seca. Com 36 anos e dois filhos pequenos, Adão quer espalhar suas ideias como sementes de uma nova plantação pelo sertão. É tão triste quanto difícil caminhar pelo solo rachado do Açude do Caboclo, em Assaré, no sertão do Cariri. A tristeza é ver que o que restou de água é uma pequena poça esverdeada, imprestável para dar de beber a gente ou a bicho. A dificuldade é driblar os sulcos abertos na terra dura sem meter os pés nos buracos e se machucar. Mesmo assim, o agricultor Filomeno Marcos Evangelista, de 73 anos, levou ao açude seu jumento e sua égua, na manhã cinzenta e abafada de 14 de junho. Quando viu a água sem serventia, tratou de pegar a foice e foi catar madeira de modo a fazer uma cerca para evitar que os animais se atolassem na poça na ânsia de matar a sede. O jumento, que nem nome tem, e a égua, que ele chama de burra, são os companheiros que restaram a Dadá no trabalho diário. O “gadinho” de 40 cabeças foi levado para pasto alugado em Nazaré, localidade próxima ao Açude Canoas, onde ainda havia água em meados de junho. Dadá mantém a rotina de transferir o gado nas secas mais agudas desde a estiagem de 1958. “Aqui ao menos ainda tem para onde levar os bichos, mas lá para o sertão dos Inhamuns o jeito foi abrir a porteira para não ver eles morrerem.” Foi isso mesmo que aconteceu em algumas cidade do Inhamuns, como Aiuaba e Tauá. Em Aiuaba, todas as barragens secaram, até mesmo a Barragem Velha, que nunca negara água. “Tenho dois netos e eles sempre me dizem para parar de trabalhar, me aquietar. Mas não paro, vou trabalhar enquanto tiver força. Meu movimento aqui é esse, é terra e gado. Outro dia me ofereceram mil reais pelo jumento. Não vendo. Sou mais teimoso que ele.” Dadá recebe um salário-mínimo como aposentado. Como sempre plantou tudo o de comer, o dinheiro dava para os remédios e outras despesas. Mas sem plantar desde o ano passado, os recursos foram minguando na medida em que a terra ia engolindo a pouca água restante. “O mais difícil foi quando eu tive de comprar duas sacas de feijão por R$ 720. Em 51 anos de casado, eu nunca tinha feito isso. Minha mulher até verteu choro.” Do outro lado da estrada, em Ouricuri, Adão de Jesus Oliveira, de 36 anos, tem comida para vender. Não que o Criador tenha livrado a cidade pernambucana do flagelo da seca, muito antes pelo contrário: Ouricuri é paisagem de dar dó de tão seca nesse inverno que não houve. Mas Adão não esperou chuva para plantar. Usou a pouca água que tinha de forma inteligente, com canteiros feitos em cima de lonas e cercados por pneus de caminhão. Dessa forma, a água fica retida por mais tempo, favorecendo o plantio. Usou adubo de resíduos orgânicos, que ele mesmo fez. E está colhendo o suficiente para o consumo da casa e para vender na feira da cidade. Casado com Fabiana e pai de Fernando, de nove anos, e Fernanda, de seis, Adão é um sujeito experimentador. Desde que chegou a Ouricuri, em 1986, removido do Piauí com uma comunidade inteira pela construção da Barragem dos Algodões, ele botou na cabeça que não ia mais largar terra para trás. Na Agrovila Nova Esperança – um nome inspirador para ele -, Adão teve o apoio da ONG Caatinga (Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores e Instituições Não-Governamentais Alternativas) para adquirir e aprimorar técnicas de convivência com a seca. Como, por exemplo, não cortar os mandacarus pela base, porque aí eles não crescem mais. ‘Meu negócio é roça, tem jeito não’ “O Adão tem criado, a partir da vivência dele, condições para viabilizar tanto a criação de animais quanto a produção de alimentos. E mesmo no período mais seco ele ainda consegue produzir para comercializar, não apenas para o consumo próprio”, atesta Elka Macedo, da ONG Caatinga, apoiada por entidades internacionais, como a Action Aid. O princípio básico é a agroecologia, em que o plantio é consorciado entre plantas nativas, frutíferas e forrageiras (estas usadas basicamente para alimentar os animais). Não há desmatamento, nem queimadas. Os galhos secos de árvores como os ouricuris e as oiticicas são podados e depois utilizados como adubo, junto a outros resíduos orgânicos. A horta de Adão tem pimenta, coentro, salsa, cebolinha, beterraba, alface. As hortaliças têm palmas e mandacarus como vizinhos, plantas típicas da caatinga. “A agroecologia resiste mais à estiagem, temos autonomia e segurança alimentar”, ressalta Adão, que já teve proposta de emprego em Ouricuri, mas preferiu declinar. “Meu negócio é roça, tem jeito não. Acho que estou aprendendo a conviver com o semiárido com esses experimentos que iniciei em 2006. Minha mãe tem 16 hectares de terra para dividir entre dez filhos e é nesse pedacinho de chão que me cabe que vou levando.” Bem no meio do caminho entre Assaré e Ouricuri fica Exu, a terra de Luiz Gonzaga. Um dos versos mais proféticos do Rei do Baião, em parceria com Zé Dantas, está na canção ‘Vozes da Seca’ e diz assim: “Mas dotô, uma esmola/a um home qui é são/ou lhe mata de vergonha/ou vicia o cidadão”. Homens acuados pela mesma seca, Dadá e Adão trilharam caminhos opostos. Um teve vergonha porque comprou feijão pela primeira vez na vida, enquanto aguardava a chuva que não veio. Outro não esperou água cair do céu e fez do seu quintal um celeiro na devastação. Talvez o melhor caminho a tomar, às vésperas de mais uma estiagem no sertão, seja desacreditar que a seca é castigo divino, diante do qual só caiba resignação.

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